Na
próxima sexta feira 13, terá início um evento cultural importante e inédito no
Brasil. É o Porto Alegre Noir. Por todo o mundo há diversos festivais dedicados
à literatura policial. Eu já participei da BAN, Buenos Aires Negra, um dos mais
importantes festivais sobre literatura policial de língua espanhola. No Brasil,
é a primeira vez que alguém tem esta iniciativa. Este alguém é o escritor,
tradutor e editor César Alcázar. Ele teve a ideia, colocou em prática e foi
recebendo adesões. O evento reunirá escritores, professores, jornalistas,
cineastas e amantes do tema. Antes mesmo de começar, já se pode afirmar que
será um sucesso.
No
domingo, dia 15, vou mediar a mesa “Detetives da Ficção, Ontem e Hoje”. Gosto
muito do histórico da literatura policial. Por ser uma literatura de gênero, é comumente
classificada como literatura menor, literatura de entretenimento. Acredito que
existe literatura boa, ruim, mediana em todos os gêneros, inclusive na “alta
literatura”. E podemos afirmar que ao longo das publicações, a literatura
policial foi perdendo a pecha de ser só entretenimento. Seu histórico está aí
para provar.
Se
pensarmos em crimes na literatura, a Bíblia nos mostra que a vida na terra,
fora do Paraíso, começa com Caim matando Abel. No caso, não foi necessário o
detetive. Deus tudo via, não precisou de nenhum truque de detetive para apontar
o assassino.
Desde o
registro deste primeiro crime, foram necessários muitos séculos de História e
Civilização para se criar O DETETIVE. O primeiro homem genial, capaz de
detectar as marcas deixadas por um criminoso foi o detetive Auguste Dupin,
criação de Edgar Allan Poe. Na árvore genealógica da literatura policial, Allan
Poe é o tronco principal. Quando publicou “Os Crimes da Rua Morgue”, e em
seguida “O Mistério de Marie Roger” e “A Carta Roubada”, teve início uma das
mais fantásticas fórmulas literárias de todos os tempos (crime, investigação e
solução), que vem se repetindo até nossos dias com estrondoso sucesso. Como
parte da fórmula, foi engendrado O DETETIVE, uma máquina de pensar, que a
partir de vestígios, pistas e indícios, consegue, através da dedução lógica
rigorosa, reconstruir toda a história da criatura que praticou o crime.
Para
engendrar essa figura, Allan Poe teve de incorporar muito bem o espírito da
época em que viveu. Em meados do século XVIII, quando o detetive Auguste Dupin
estava sendo elaborado, a revolução industrial, com seus motores movidos a
vapor e suas locomotivas, trazia mudanças bastante significativas ao mundo
civilizado. Uma delas foi o surgimento das grandes cidades. Com a consequente
concentração de população, apareceu a ideia de anonimato, situação propícia ao
crime. O criminoso, que já não era um elemento conhecido em sua comunidade, mas
um anônimo, acreditava poder cometer o delito e facilmente se perder na
multidão. Por outro lado, o aparecimento desse homem que praticava delitos, fez
com que a polícia começasse a se organizar de forma sistemática.
O romance
policial com seu detetive precisou de mais alguns truques.
Quando Poe engendrou “Os Crimes da Rua Morgue”, era a época do
positivismo, corrente filosófica criada por Augusto Comte que considerava como
único conhecimento legítimo o que se encontrava nas ciências naturais, baseado
na observação, experimentação e utilização de conceitos matemáticos. Era a
época em que Charles Darwin, baseado na observação da natureza, estava
formulando o seu livro “A Origem das Espécies”. E foi baseado na observação
que, aos poucos, percebeu-se que mesmo no anonimato da cidade grande, o
criminoso deixava marcas. Ninguém se deslocava sem deixar traços.
Muitos foram os folhetins
publicados na imprensa da época que falavam de violência e crimes. No entanto,
foi Edgar Allan Poe quem criou um homem genial, capaz de observar
cientificamente cada um dos traços deixados pelo criminoso, e que através
deles, vai ser capaz de chegar ao assassino.
Esse homem genial, segundo Chandler, teve também uma pitada de
influência do romance de cavaria do final do período medieval. O romance de
cavalaria era feito de um enredo cheio de suspense e violência, e tinha como
propósito o modelo cristão em que os cavaleiros do bem, que em geral saíam em
busca do santo Graal, após muitas e variadas peripécias, vencessem o mal.
Chandler, num ensaio, fala do detetive como um cavaleiro errante pelas ruas de
Los Angeles, a cidade grande. Acredito que o romance policial traz também dos
romances de cavalaria a sua carga mítica: a grande luta do bem contra o mal que
termina por apontar o criminoso, resgatando assim o mundo do caos.
Como vimos, foram necessários séculos de História e
Civilização e uma conjunção de revolução industrial, literatura gótica,
romances de cavalaria, filosofia positivista, para que Allan Poe juntasse tudo
isso numa coqueteleira, chacoalhasse bem e produzisse O DETETIVE. Esse homem
genial traz a cada um dos leitores o prazer de enveredar num cotidiano repleto
de minúcias, onde o raciocínio lógico deságua num final feliz e, diferente do
que vemos acontecer na realidade dos dias de hoje, o bem sempre vence o mal,
proporcionando aos leitores a mesma satisfação do mundo mágico dos contos de
fadas.
Quarenta anos após o aparecimento dos contos de Poe, surgiu Sherlock
Holmes, que aperfeiçoou a técnica. E até hoje, é o que é. Daí para a frente o
romance policial seguiu uma carreira interessantíssima, que é sobre o que vamos
falar na nossa mesa no Porto Alegre Noir.
A partir
de 1920, na Europa, existiu a era de ouro do romance policial que inclui as
damas do crime, a rainha, Agatha Christie, e diversos escritores. Foi um tempo
em que o cadáver aparecia num determinado local, de preferência fechado, e o
detetive cerebral ia encontrando pistas até descobrir quem matou. Uma
verdadeira equação matemática.
Do lado
de cá do Atlântico, em 29, surgiu o detetive durão, o “hard boiled”, que saiu
às ruas, usava automóvel, além do cérebro, usava os punhos. Ao lado dele, já
não eram as damas da aristocracia que circulavam, mas a mulher fatal,
interesseira.
Sam
Spade, criação de Dashiell Hammett e
Philip Marlowe criado por Raimond Chandler foram pioneiros no gênero do
“hard-boiled”, o detetive durão.
A
literatura policial se espalhou. Nero Wolf com suas orquídeas e seu fantástico
cozinheiro, o interessantíssimo Comissário Maigret, e muitos mais. O cinema
percebeu que era a fórmula perfeita para captar os espectadores. Hitchcock e outros
cineastas, levaram boas tramas policiais para filmes e séries.
Quando já
não se lavava a roupa suja em casa, ou mesmo em confessionários e passou-se a
usar a corte para resolver as quizilas familiares, surgiu o detetive advogado. Acompanhando
as guerras na Europa, surgiu o detetive espião. Um ótimo exemplo é James Bond. Com o
desenvolvimento da tecnologia vieram os cientistas. A doutora Kay Scarpeta,
criação de Patrícia Cornwel, que inspirou a série CSA.
No momento, temos a febre nórdica que se
espalhou pelo mundo depois da trilogia Milenium. Adoro a personagem Lisbeth
Salander e acredito que ela merece um estudo a parte.
No
Brasil, temos muitos escritores que estão se dedicando a literatura policial,
inclusive eu, com meu detetive Alyrio Cobra.
E não se
pode deixar de mencionar a iniciativa da editora Akashic Books, que publicou
nos Estados Unidos uma série de contos noir cujo estrondoso sucesso se espalhou
por diversas cidades do mundo e chegou até o Brasil. Já temos dois volumes. Rio
Noir e São Paulo Noir. Nestas antologias o grande personagem é a cidade grande
onde o detetive atua decifrando os enigmas da cidade, explorando os aspectos
sociais, as forças ocultas e as fragilidades humanas que compõe o dia a dia de grandes
cidades.
A
literatura policial, sempre menosprezada pela crítica, teve sua grande virada
quando Umberto Ecco escreveu o Nome da Rosa. Ele usou a fórmula (crime, no caso
serial killer, investigação e solução) para expor toda a sua erudição.
Acompanhando
a evolução social e tecnológica, escritores vêm criando detetives com novas
artimanhas, novas formas de investigar. Hoje temos representantes em quase
todos os países do mundo. E esta literatura retrata a sociedade local. E é dela
que eu, Eduarda de Carli e André Zanki Cordenonsi vamos falar. Para quem gosta de literatura policial, prometo trazer nas
próximas crônicas, um pouco do Porto Alegre Noir.